Imagino um neófito (pessoa recém-entrada numa nova cultura, num novo conhecimento) querendo se tornar espírita. Chega a qualquer Casa Espírita do País e certamente se deparará com algumas informações e práticas interessantes.
Certamente ouvirá que o Espiritismo se fundamenta em Allan Kardec, que essa Doutrina é o Cristianismo redivivo, que ela aborda três aspectos dos quais não nos afastamos sem prejuízos (a ciência, a filosofia e a moral ou religiosidade), que dentro de seus postulados se destacam Deus, a pluralidade dos mundos habitados e das existências, o intercâmbio entre os seres humanos e os Espíritos desencarnados, a figura magistral de Jesus e o progresso espiritual; tudo isso sem falar na grande verdade de que precisamos crescer em amor e sabedoria.
Tudo isso está corretíssimo, mas atualmente algumas “pequenas trocas” têm favorecido que grandes mudanças no entendimento gerem preocupações.
Vejamos alguns exemplos.
Allan Kardec é a base e, portanto, toda a sua obra espírita; mas a preocupação parece ser de apenas se divulgar o “pentateuco”, como se as demais obras dele não fizessem parte do contexto.
O Cristianismo, para ser considerado redivivo, deve não só explicar o que não foi dado a entender aos povos antigos, mas, sobretudo ser exemplificado, no dia a dia, como viver-lhe os postulados, tanto administrativamente como em termos de vida pessoal, mormente dos que se põem a apresentá-lo e defendê-lo. Ou seja: acima de tudo o Espiritismo precisa ser cristão, no seu sentido amplo, e não só na literalidade de algumas frases.
O Codificador foi pródigo em deixar claro o aspecto trino da Doutrina Espírita, mas parece que quem mergulha nas feições científicas e/ou filosóficas dessa abençoada fonte de luzes é quase sempre encarado como “um ser à parte”, como se pesquisas e filosofias fossem avessas aos princípios básicos do Espiritismo. Haja vista o que se tem feito para se desmotivar o estudo em torno do Magnetismo ou a quase prevenção existente contra os questionadores, filósofos, portanto.
No bojo de tudo isso, adaptamos termos, improvisamos outros e desconfiguramos outros mais. Magnetizador e magnetismo trocamos para passista e passes, levando o neófito a não encontrar nada a respeito na obra de Kardec; a vontade foi substituída pela frágil boa vontade; no lugar da necessidade de estudarmos e fazermos com sabedoria o que nos cabe, veio a frase “os Espíritos fazem tudo”, levando a maioria ao improdutivo cruzar de braços; os insucessos dos estudos ou das terapias ditas espíritas são apontados como “falta de merecimento” da parte de quem não se sai bem; as dores e mazelas das pessoas, normalmente são apontadas como originadas de antigas encarnações, como se a lei de reencarnação fosse muito mais voltada para punir do que para oferecer oportunidade de recuperação dos seres; os contatos com os Espíritos só serão possíveis se Eles quiserem, derrogando o que Allan Kardec preconizou acerca das evocações, pois mais forte do que o ensinado pelo Mestre Lionês vinga uma simplória frase: “o telefone só toca de lá pra cá”; e a fé, aquela que enfrenta a razão em todos os tempos e lugares, é tratada como se não nos permitisse discordar de ideias que vem não se sabe de onde, não abre espaço para que tenhamos pontos de vista diferentes, não enfrenta qualquer razão, posto que é de todo emocional…
A Doutrina Espírita é magistral, grandiosa, linda e frondosa, nos permitindo viver a vida como uma grande bênção e não como um enorme castigo ou ameaças deste. E o que temos feito para que ela seja o que deve ser? Será que deixar como está é suficiente para seu ressurgimento? Se Allan Kardec fosse espírita nos dias atuais deixaria tudo como está ou procuraria resgatar o que parece estar escapando de nossas mãos, de nossas vidas?
Que nossos roteiros de estudos tragam de volta Allan Kardec e Jesus, do contrário, de tão pálido, o Espiritismo será apenas mais um movimento, tão-somente mais uma igreja.
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